AS FLORES SOBRE AS CORRENTES | FICHAMENTO

 

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AS FLORES SOBRE AS CORRENTES

ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984

“Não importa que os capitalistas frequentem templos e façam orações [...]. A riqueza se constrói por meio de uma lógica duramente material: a lógica do lucro, que não conhece a compaixão. Na verdade, aqueles que têm compaixão se condenam a si mesmos à destruição…” (pp. 69-70)

Enquanto Durkheim, cuja ideia foi tratada no capítulo anterior, tentou explicar a religião buscando os valores espirituais do mundo primitivo, Marx analisava uma sociedade em construção, trazendo uma visão pragmática do mundo material, acreditando em uma sociedade comunista sem divisão em classes sociais.

O mundo que Marx observava era totalmente secularizado, fundamentado na lógica do lucro e sedimentado no acúmulo de riquezas e na posse, estando estes elementos indiferentes aos valores morais e à ética religiosa.

A religião, para ele, não passava de mero adorno estético a este mundo. Não aplicados à vida prática, os valores morais foram analisados por Marx sob a ótica materialista, que via a religião e suas doutrinas morais como ideias impossíveis de serem abandonadas, já que existiam alheias à vontade humana. Para o pensador, a religião, acusada pelos hegelianos de ser culpada pelos problemas contemporâneos, não produzia efeitos no mundo capitalista.

"Como poderia um eunuco ser acusado de deflorar uma donzela? Como poderia a religião ser acusada de responsabilidade, se ela não passava de uma sombra, de um eco, de uma imagem invertida, projetada sobre a parede? Ela não era causa de coisa alguma. Um sintoma apenas." (p. 71)

Na contramão dos filósofos hegelianos, que viam a vida social como resultado das ideias e das mentalidades, Marx propõe que estas não aparecem antes dos fatos, mas sim após eles. A consciência e as formas de pensar da sociedade seriam consequências das condições de vida impostas às pessoas e não o contrário. Por isso, a religião era a sombra, o eco, resultado produzido pela sociedade, feita pelos seres humanos e reflexo de suas condições materiais.

Quem produz a religião é um corpo físico que possui necessidades fisiológicas, que trabalha para sobreviver, que vivencia o sofrimento e que sonha. Marx também sonhava. Alimentava a utopia de um mundo onde o trabalho fosse fonte de prazer e satisfação, meio de expressão da liberdade e instrumento para a construção de um mundo harmônico.

"É claro que Marx nunca viu este sonho utópico realizado em sociedade alguma. Foi ele que o construiu a partir de pequenos fragmentos de experiência, trabalhados pela memória e pela esperança. Mas são estes horizontes utópicos que aguçam os olhos para que eles percebam os absurdos do ‘topos’, o lugar que habitamos. E, ao contemplar o trabalho, o que ele descobriu foi alienação do princípio ao fim." (p. 74)

Chegamos a um dos mais importantes conceitos trabalhados por Marx, o de alienação. O termo remete a transferência de algo de uma pessoa para outra, mas, no mundo capitalista, Marx o aplicou ao trabalho, já que ele não era realizado a partir do desejo daquele que trabalha, era feito de forma inconsciente pelo trabalhador e promovia o sofrimento, além de criar um mundo independente da vontade de todos.

A lógica do lucro, motor do mundo capitalista, transforma tudo em mercadoria e cria um mundo secular e utilitário totalmente alienado, já que sua existência está separada do desejo das pessoas, que veem o trabalho terminado em si mesmo. Dentro desse utilitarismo, as coisas perdem seu valor simbólico e até material se contrário à lógica do lucro. Um exemplo disso está no fato de que

"as áreas verdes são entregues à especulação imobiliária, os índios perdem suas terras porque o gado é melhor para a economia do que índio, as terras vão-se transformando em desertos de cana, enquanto que rios e mares viram caldos venenosos, e os peixes boiam, mortos." (p. 77)

Nesse mundo o corpo também é alienado. Único bem pertencente ao trabalhador, ele é transferido ao capitalista e é acoplado aos meios de produção, sendo governado pela lógica do lucro em troca de um salário. Quando não pode mais ser explorado, esse corpo é devolvido, carregado de marcas e inútil para esse mundo utilitário.

É nesse contexto que se dá o conflito entre trabalhadores e patrões. Contradição máxima no capitalismo. Esse conflito, anunciado por Marx, é inevitável e insolúvel. Mesmo que haja boa vontade por parte dos trabalhadores e benevolência por parte dos patrões, a alienação está dada, resultando, de qualquer forma em uma realidade que consistem em,

"homens trabalhando, em relações uns com os outros, sob condições que eles não escolheram, fazendo com seus corpos um mundo que não desejam… E é disto que surgem ecos, sonhos, gritos e gemidos, poemas, filosofias, utopias, critérios estéticos, leis, constituições, religiões." (p. 79)

Sendo assim, Marx conclui que a religião no mundo capitalista tem a função de produzir ilusões para consolar os oprimidos, justificando para eles as condições adversas que enfrentam e explicando seus sofrimentos como instrumentos da vontade de Deus. Assim, a religião cria legitimações para a aceitação do poder nas mãos dos mais fortes que exploram os mais fracos.

Por isso Marx considerou que a religião era o ópio do povo, já que ela aliviava a dor sem agir na causa do sofrimento, se colocando como condição para a felicidade verdadeira, enquanto os poderosos desfrutavam a felicidade do mundo material às custas dos sofredores.

Como resultado da condição social, a alienação das mentalidades promovida pela religião é possível de ser combatida, já que a mesma era um eco do mundo capitalista. Marx acreditava que a religião chegaria ao fim entre a humanidade na medida em que fosse desaparecendo a alienação.

Isso só seria possível com a construção de uma sociedade livre, produtora de um mundo sem oprimidos e opressores. Tal utopia de Marx era a manifestação da voz de seu desejo, que criou novos símbolos sagrados que estavam fundamentados na esperança de superar as desigualdades e a alienação criada pelo mundo capitalista.

"E Marx fala sobre uma sociedade sem classes que ninguém nunca viu, [...] e no triunfo da liberdade e no desaparecimento de opressores e oprimidos, [...] sim, eu me perguntaria se tudo isto se deveu ao rigor de sua ciência ou à paixão de sua visão, se se deveu aos detalhes de sua explicação ou às promessas e esperanças que ele foi capaz de fazer nascer." (p. 83)

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